quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Reinvenção sem compromissos

Com Córtex, os paraenses do Cravo Carbono dão um passo adiante na cena musical independente

Falar de cena independente em Belém é falar de uma rotina um tanto difícil, seja para os artistas que a carregam nas costas, seja para os seus admiradores. Diferente de alguns grupos avessos a exposição, o Cravo Carbono, com quase onze anos de carreira e um único disco editado (o registro-ensaio Peixe Vivo), lança seu segundo trabalho, Córtex, pelo selo Ná Records, sem querer mudar o mundo ou exaltar apenas a cultura marajoara.

“Sempre todo artista tenta se superar. Para nós, foram quase quatro anos sem sair em turnês, não por falta de oportunidades, e muitas dificuldades estruturais e financeiras. Mas o Córtex está aí!”, afirmou Lázaro Magalhães. O jornalista, músico e professor é do Cravo desde o começo do projeto, e ouve com satisfação as 14 faixas do novo trabalho, que foi gravado de forma semiprofissional em estúdios e computadores caseiros.

Além do vocalista, Vovô (bateria), Pio Lobato (guitarras) e Bruno Rabelo (guitarras) completam a formação do Cravo Carbono, que busca influências em sons tão diversos como as guitarradas e o tradicional brega. Segundo Lázaro, o quarteto fez, desta vez, um trabalho “bem mais aberto e elaborado do que em Peixe Vivo” (gravado em uma única tarde, durante um ensaio para a Rádio Cultura FM].

Em uma primeira audição, já dá para sentir a diferença: os ritmos enérgicos de músicas como “Marx Marex” e “Café Br”, e as experimentações com convidados especiais em faixas como “Brasileiros Invadem o Mundo da Moda”, enfatizam uma poesia menos explícita e melodias mais diversificadas. Para Lázaro, a profissão de jornalista acaba influenciando as letras do Cravo. “As experiências que a gente tem na profissão, a vivência da vida cultural, acaba sendo transferida para a própria experiência da banda”, disse.

Uma das bandeiras do grupo é o combate ao regionalismo passional, tão praticado por alguns grupos. Para o cantor, é importante estar atendo para as mudanças no mercado. “Nossas músicas sempre revisitam os ritmos do brega, carimbó, entre outros, mas não significa que o Cravo esteja fechado nesse estilo”, disse Lázaro.

A banda já colhe bons resultados desde o lançamento de Córtex; no final dessa semana, os quatro devem ir a Cuiabá tocar no Festival Calango, como já se disse, sem querer mudar o mundo ou endeusar o regionalismo. O show vai marcar a primeira saída do Cravo para outro estado em anos; ao que tudo indica, valerá a pena.

Colagens – Uma das inovações que a banda promove é de, até do final deste ano, disponibilizar um site onde internautas poderão baixar e “desmontar” as músicas. “Os fãs vão poder compor, através de colagens, mixagens e misturas das melodias do disco”, afirmou o vocalista. A proposta é a de uma arte que se renove a cada audição. “Peixe Vivo foi um disco direto. Queremos, com Córtex, que vocês não vejam a obra como encerrada, e produzam novas músicas a partir da proposta da banda!”, disse. Algumas das “misturebas” devem ser colocadas em uma seção especial no site.

Independência – A estrada do Cravo Carbono, apesar de longa, pouco avançou na exposição em mídia. Desde as primeiras turnês, os paraenses precisaram sobreviver através da própria divulgação na cena underground, sem contar com as grandes mídias. Isso fez com que percebessem as mudanças no mercado fonográfico que a banda tinha que enfrentar. “Hoje em dia, é muito difícil um artista sobreviver de Cd. Não só as vendas caíram, como a melhor forma de divulgar o som das bandas, independentes ou não, é via Internet.”, afirmou Lázaro, que vê a comunidade de fãs do seu grupo no Orkut como uma ótima força de divulgação.

Quando questionado sobre as dificuldades que o Cravo Carbono sente na cena regional, Lázaro foi enfático: “o que falta aqui é um jornalismo cultural de verdade, que saiba divulgar os vários movimentos musicais com interesse e um mínimo de especialização no assunto”, disse.

Por Guto Lobato

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

A voz do dono e o dono da voz

A linha tênue entre “o-que-se-diz” e o “como-se-diz” na música brasileira



“Eu não componho, minha criação é na hora de interpretar”, revela Maria Bethânia. Utilizando como mote as palavras de uma das maiores intérpretes do Brasil, surge uma discussão bem interessante de ser colocada em pauta: até que ponto um compositor possui controle acerca daquilo que cria?

Segundo o poeta Waly Salomão, um leitor - neste caso um ouvinte – “é querido e livre, e pode ler (ou ouvir) assim ou assado”. Nesse sentido, pressupõe-se que o intérprete é co-autor daquilo que interpreta. Um cantor, por exemplo, imprime sua assinatura e suas verdades sobre a obra na qual se debruça – principalmente porque escolheu aqueles versos e notas como uma ferramenta de auto-tradução. “Aquilo que eu digo em uma música pode ganhar dezenas de outras conotações, dependendo de quem a interpreta. E eu me divirto com isso”, comenta Maria Lídia, compositora de grande expressão local.

Já Marina Lima, autora de grandes canções em parceria com o irmão, o filósofo Antonio Cícero, vê de outra forma. Seu trabalho partiu da vontade de expressar com palavras próprias sua visão de mundo. “Quando você fala através da boca de outra pessoa, não tem compromisso com a imagem que faz de si próprio”, explica. No caso do trabalho que reflete demais seu autor, outra interpretação pode torná-lo vazio. Adriana Calcanhotto, apesar de negar que seu trabalho seja existencialista, confessa que suas canções acabam comentando-a, de algum jeito: “Não que eu tenha vontade ou necessidade de fazer um trabalho confessional. Mas elas acabam virando um instantâneo de um momento meu”.

Nesta discussão não importa quem está certo ou errado. Já disse Chico Buarque, “músicas são filhos postos no mundo”, livres para despertar quaisquer sentimentos em quem quer que as ouça. Assim, elas permitem que sejamos seus compositores e intérpretes, fazendo de suas verdades as nossas. É como cantou Milton Nascimento: “Certas canções que ouço / Cabem tão dentro de mim / Que perguntar carece: / como não fui eu que fiz?".
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De olhos bem abertos

Ensaio Sobre a Cegueira apresenta retrato de uma sociedade cega por opção

Que José Saramago prefere o surreal ao objetivo, isso todo mundo sabe. Mas talvez antes de “Ensaio Sobre a Cegueira” ele nunca houvesse conseguido juntar, com tanta destreza, ficção e realidade. Sem desmerecer a lisergia de “Objecto Quase”, que causa pesadelos em estudantes de pré-vestibular até hoje, ou em “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, cujo título em nada reflete seu ateísmo: em termos de conteúdo, o lançamento de 1995 supera, de longe, os últimos.

O enredo começa com uma epidemia em uma pequena cidade, que vai retirando, aos poucos, a visão de todos seus habitantes. Os acometidos pela tal “cegueira branca” (assim chamada pelo facho de claridade que substitui a vista dos enfermos) são internados em um sanatório abandonado, até que o número de cegos supera o de “normais” e o desespero toma conta da população, fazendo-a regredir à barbárie e esquecer quaisquer ideais de civilização.

Ao que parece, Saramago quis, mais do que nunca, mostrar que a literatura pode explorar a imaginação e, ao mesmo tempo, fazer vista uma hipótese para o futuro. A abordagem do tema segue uma linha dramática, mas nem por isso óbvia: a protagonista, que permaneceu com a visão, não conta para ninguém de sua “sorte”, e passa a ser a única espectadora de um cenário grotesco. No final, a mensagem é clara: ou todos reabrem os olhos, ou o fim estará mais próximo do que os sentidos prevêem.

O escritor sempre buscou aguçar os sentidos do leitor sob a ótica do fantástico; em “Ensaio Sobre a Cegueira”, finalmente, parece abrir os olhos deste através do sofrimento de seus próprios personagens. Quem sabe a idéia desta ficção não seja metaforizar a cegueira aparente de alguns de nós, diante das ameaças de pagar por uma era de excessos? Quem sabe o autor, assim como em “Objecto Quase”, não queira fazer polêmica e discutir a tal pós-modernidade por vias literárias?

Se esse for o caso, ótimo, pois o tiro de Saramago atingiu em cheio os cegos por opção; perder a percepção da realidade é, talvez, menos deprimente do que a ignorar e fechar os olhos para o mundo. Por isso afirmar que, do alto de seus 85 anos, o português ainda tem muito a nos ensinar sobre a vida, a morte e suas subjacências. O Prêmio Nobel de Literatura pela publicação foi uma conseqüência: “Ensaio Sobre a Cegueira” é uma prosa completa, que junta drama, crítica e a escrita refinada de um dos melhores escritores do século. Essencial.

Por Guto Lobato

Cia Moderno para além da dança

"Avesso" para a capital carioca

A Cia. Moderno de dança prepara, a partir dessa semana, sua viagem para o Rio de Janeiro. Na mala, o espetáculo “Avesso”, que ganhou o Prêmio Secult do ano passado e foi convidado pelo Palco Contemporâneo, evento patrocinado pelo governo do Rio, para ocupar os teatros da Lapa na primeira metade de setembro.

“Avesso” é o resultado da tese de doutorado da coreógrafa Ana Flávia Mendes, que aborda uma metalinguagem do corpo. A reflexão trata, com tecnologia, a arte que o movimento proporciona. “No processo de criação de ‘Avesso’ foi priorizado o aprimoramento da consciência corporal dos intérpretes-criadores a partir de uma mescla entre essas técnicas, além de terem sido utilizados alguns recursos tecnológicos da medicina para propiciar a visualização da anatomia e fisiologia humana internas”, diz Ana Flávia sobre o processo de criação da obra.

Depois de ter sido analisada por nomes de peso do cenário artístico, como Paes Loureiro e Miguel Santa Brígida, o espetáculo ganhou um caráter mais lúdico e menos acadêmico. O diretor teatral e bailarino Márcio Moreira comenta a inserção de sua linguagem na obra. “É um trabalho muito difícil mesclar teatro e dança numa linguagem híbrida e única, mas o resultado surpreende. Uma temática de meta-corpo amarra mais ainda a mão de um diretor teatral, já que cada um imprime seu toque pessoal no acabamento”.

A peça será reapresentada em Belém no final do ano, mas seu caráter dinâmico deve alterar o seu conteúdo. “Conforme o grupo ensaia e apresenta, novos movimentos são descobertos. Afinal,é o corpo falando do corpo”, encerra Márcio.

Perfil - Criada em 2001 por alunos e antigos alunos do colégio moderno, a Cia moderno de dança se auto-intitula, um grupo de fronteira. Traduz a contemporaneidade de sua dança como uma arte que nem é totalmente embasada por técnicas do ballet clássico, nem é experimentalista ao ponto de perder um foco para estudo.

O grupo aproveita os conhecimentos acadêmicos de seus bailarinos para aprofundar as temáticas traçadas pelos espetáculos. Através de diversas áreas, como psicologia, jornalismo, direito e educação física, os integrantes da Cia reinventam a própria forma de dançar, partindo de uma linha de pesquisa que a coreógrafa Ana Flávia Mendes, denomina “Movimento autônomo”.

É com esse pensamento acadêmico que os ex-alunos do colégio moderno ganharam o cenário nacional contando através do corpo diferentes pontos de vista da sua própria realidade.
“O conhecimento que os bailarinos adquirem fora da sala de dança é a matéria-prima da arte produzida aqui dentro”, comenta Ana Flávia sobre a necessidade de se manter atualizado.Hoje a Cia sai dos festivais de competição e entra na área de mostra cultural para abrir discussões e pontos de vista sobre suas produções artísticas.


Por Márcio Moreira